Uma fria madrugada
Naquele exato momento eram 02:37 da manhã. Seus pensamentos estavam vagos, tortos, quem sabe até um pouco por causa do teor etílico em seu sangue. Não sabia mais distingüir seus devaneios da realidade. Paulo não sabia mais nem mesmo se estava acordado. Sabia, somente, que sentia frio, muito frio. Suas mãos e seus pés estavam a um passo de congelar. Afinal de contas, Nova Iorque é uma cidade realmente muito fria no inverno.
Naquele momento, Paulo era somente mais um -pobre homem brasileiro- na multidão inquieta que transita diariamente pelas ruas de Nova Iorque. Cruzam a Fifth Avenue a toda hora, passam pelas ruas em trajes de trabalho, sejam businessmen ou pessoas comuns. Mas Paulo estava lá, entregue à própria sorte, regido pelo destino, sem emprego, sem família, só podendo contar com ele mesmo e, é claro, com sua inseparável garrafa de álcool. No entanto, a madrugada lhe reservara uma grande surpresa.
Mesmo praticamente só e rodeado tão somente pelos vultos das milhares de pessoas que ali passam diariamente durante o dia, eis que ele avista uma figura graciosa, fragrante, deliciosamente fragrante, e, segundo sua própria imaginação, tenra. Não que ele não a enxergasse bem, não é isso, mas não tinha muita noção se estava apenas sonhando ou se aquilo realmente era verdade. "Ah, mesmo que seja um sonho, que sonho mais maravilhoso!" - falou consigo mesmo.
O que Paulo não poderia imaginar é que no meio de milhões de estado-unidenses ele iria encontrar semelhante figura em seu caminho já totalmente desfigurado. Rose, tão perfumada e singela como seu próprio nome sugere, sentiu-se na estranha obrigação de falar com aquele homem sujo, cabelo desalinhado, roupas rasgadas e com bastante frio. Sentiu-se também atraída, sabe-se lá o motivo, por ele. E não o julgou. Não ficou pensando no que teria acontecido a ele pra ter tido este destino. Apenas queria conversar um pouco, sobre qualquer coisa, estava por demais angustiada por estar em casa, acordada, olhando para as paredes.
Deu a ele suas luvas, delicadas e quentes, e perfumadas com seu cheiro. Mais que prontamente Paulo aceitou, pois sabia que suas mãos já estavam a ponto de literalmente congelar. Ele começou a se sentir novamente sóbrio com o chocolate quente que Rose o comprou. Conversaram então sobre o clima, sobre a hora em que ambos estavam no meio da rua e seus motivos. Conversaram também sobre a nacionalidade de cada um. Ele, um pobre baiano que foi à América procurar um emprego; ela, uma estado-unidense de classe média alta, que estava se sentindo uma miserável mulher. Falaram, ainda, sobre seus fortúnios e infortúnios. Em um certo ponto da conversa ambos não tinham mais o que se dizer, e apenas ficaram se olhando. Rose chorou, com seus espinhos cravados em seu coração.
E naquela madrugada Paulo teve onde dormir.
Texto por Lucia Silva
2 Comments:
Gostei do tom direto. Estimulo esse exercício, Lucia. Gosto ainda do fim, sem explicãções. Visitarei outras vezes este blog.
Abraço,
Marcelo Diniz
Parabéns, Lucia. Vc tem tutano e escreve muito bem, sem firulas, como bem apontou o Marcelo.
Talvez -enfatizo o talvez- fosse interessante um pouco mais de desregramento.
Bj.
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