Contos & Poesias

Wednesday, April 19, 2006

O único animal

O homem é o único animal...
... que ri
... que chora
... que chora de rir
... que passa por outro e finge que não vê
... que fala mais do que papagaio
... que está sempre no cio
... que passa trote
... que passa calote
... que mata a distância
... que manda matar
... que esfola os outros e vende a pele
... que alimenta as crias, mas depois cobra com chantagem sentimental
... que faz o que gosta escondido e o que não gosta em público
... que leva meses aprendendo a andar
... que toma aula de canto
... que desafina
... que paga pra voar
... que pensa que é anfíbio e morre afogado
... que pensa que é bípede e tem problema de coluna
... que não tem rabo colorido, mas manda fazer
... que só muda de cor com produtos químicos oe de vergonha
... que tem que comprar antenas
... que bebe, fuma, usa óculos, fica careca, põe o dedo no nariz e gosta de ópera
... que faz um boneco inflável da fêmea
... que não suporta o próprio cheiro
... que se veste
... que despe os outros
... que só lambe os outros
... que tem cotas de emigração
... que não tem uma linguagem comum a toda a espécie
... que se tosa porque quer
... que aposta em galo e cavalo
... que tem gato e cachorro
... que tem lucro com os ovos dos outros
... que caça borboleta
... que usa gravata e pensa que Deus é parecido com ele
... que planta e colhe
... que planta e colhe e mesmo assim morre de fome
... que foi à Lua
... que apara os bigodes
... que só come carne crua em restaurante alemão
... que gosta de escargot (fora o escargot)
... que faz dieta
... que usa o dedão
... que faz gargarejo
... que escraviza
... que tem horas
... que imita passarinho
... que poderia ter construído Veneza e destruído Hiroshima
... que faz fogo
... que se analisa
... que faz ginática rítmica
... que sabe que vai morrer
... que sabe que vai morrer e mesmo assim vai atrás do motorista que cortou a sua frente sópra xingar a mãe dele e se desagravar porque nãoleva desaforo pra casa de vagabundo nenhum
... que sabe que vai morrer e mesmo assim, ou por causa disto, fica fazendo caretas na frente do espelho
... que se compara com os outros animais
... que se mata
... que se pinta
... que tem uma cosmogonia
... que senta e cruza as pernas
... que chupa os dentes
... que pensa que é eterno.

O homem não é o único animal...
... que constrói casa, mas é o único que precisa de fechadura
... que foge dos outros, mas é o único que chama de retirada estratégica
... que se ajoelha, mas é o único que faz isto voluntariamente
... que trai, polui e aterroriza, mas é o único que se justifica depois
... que engole sapo, mas é o único que não faz isso pelo valor nutricional
... que faz sexo, mas é o único que precisa de manual de instruções.


Texto por Luís Fernando Veríssimo, em "Poesia numa hora dessas?!"

Thursday, April 13, 2006

Ah, se eu soubesse...

Hoje seria um dia feliz. Tinha tomado um daqueles banhos deliciosos que nos fazem lavar a alma depois da sua caminhada diária, numa rua cercada de árvores. O aroma do novo dia começando havia lhe dado um gás extra para enfrentar o longo dia. Maria Luiza, ou Malu (como gostava que os amigos, e apenas os amigos, a chamassem), estava pressentindo que aquele dia seria especial, apesar de nada de concreto indicar isto. O dia estava como todos os outros, era apenas Malu que queria que aquele fosse diferente. E foi.
Logo assim que chegou ao trabalho ela encontrou em cima da sua -muito- organizada mesa uma carta, anônima. Dizia apenas que encontrasse com ele (ou ela) na rua Santo Agostinho em frente à padaria Q'Pão. Achou estranho, perguntou a todos na redação quem tinha deixado aquela carta em cima da sua mesa, mas ninguém soube responder. Mesmo assim, por causa da animação que acordou com ela, resolveu ir. Ah, Maria Luiza, você não deveria ter ido.
Chegando à padaria, resolveu que iria tomar um cafezinho, afinal de contas, àquela hora ela já estava ficando com fome, pois acordara muito cedo. "Deve ser alguma coisa muito boa!", pensou ela, entusiasmada. Não sabia o que esperar, nem quem esperar, mas, segundo a nota de rodapé da carta anônima, a pessoa saberia encontrá-la. Repentinamente Malu sente uma mão leve, muito leve, em seus ombros e se assusta:
- Sou eu, Maria Luiza, sua mãe! - disse a dona das mãos suaves.
- Quê?!?! Quem é a senhora?! - perguntou, assustadíssima, Malu.
- Sua mãe, pelamordedeus! Vem cá me dar um abraço!
- A senhora só pode estar louca! - esbravejava a agora não mais animada Malu - Minha mãezinha está em casa, provavelmente cozinhando nosso almoço a esta hora.
- Não, Malu, EU sou sua mãe, Jurema é apenas a moça que te criou quando você nasceu e eu te entreguei nos seus braços...
- Não me chame de Malu! Eu nem conheço a senhora! Que estória mais absurda, meu Deus! Dá licença, minha senhora!
- Não, Maria Luiza, não vá! - suplicou a senhora, aos prantos.
O dia tão maravilhoso que Maria tinha imaginado foi desmoronando. Chorou copiosamente durante horas a fio, e só depois de muito pensar retornou à redação. Pegou a carta, releu-a, e decidiu rasgá-la. Foi até o banheiro, lavou muito bem o seu rosto e foi pra casa, decidida a exigir explicações de Jurema.
O caminho foi tortuoso, pensava sem parar naquela mulher. Realmente, agora lhe parecia que a mulher guardava semelhanças com ela mesma, e ficou mais atormentada. Como assim, minha mãe?, pensou. Depois de algum tempo, lá estava Malu em casa. Quando entrou na cozinha deu de cara com sua "mãe", ou Jurema, sabe-se lá. Foi quando Malu respirou profundamente e, na decisão mais importante da sua vida, perguntou:
- O que temos pro almoço hoje, Mãe?

Texto por Lucia Silva

Monday, April 10, 2006

Uma fria madrugada



Naquele exato momento eram 02:37 da manhã. Seus pensamentos estavam vagos, tortos, quem sabe até um pouco por causa do teor etílico em seu sangue. Não sabia mais distingüir seus devaneios da realidade. Paulo não sabia mais nem mesmo se estava acordado. Sabia, somente, que sentia frio, muito frio. Suas mãos e seus pés estavam a um passo de congelar. Afinal de contas, Nova Iorque é uma cidade realmente muito fria no inverno.
Naquele momento, Paulo era somente mais um -pobre homem brasileiro- na multidão inquieta que transita diariamente pelas ruas de Nova Iorque. Cruzam a Fifth Avenue a toda hora, passam pelas ruas em trajes de trabalho, sejam businessmen ou pessoas comuns. Mas Paulo estava lá, entregue à própria sorte, regido pelo destino, sem emprego, sem família, só podendo contar com ele mesmo e, é claro, com sua inseparável garrafa de álcool. No entanto, a madrugada lhe reservara uma grande surpresa.
Mesmo praticamente só e rodeado tão somente pelos vultos das milhares de pessoas que ali passam diariamente durante o dia, eis que ele avista uma figura graciosa, fragrante, deliciosamente fragrante, e, segundo sua própria imaginação, tenra. Não que ele não a enxergasse bem, não é isso, mas não tinha muita noção se estava apenas sonhando ou se aquilo realmente era verdade. "Ah, mesmo que seja um sonho, que sonho mais maravilhoso!" - falou consigo mesmo.
O que Paulo não poderia imaginar é que no meio de milhões de estado-unidenses ele iria encontrar semelhante figura em seu caminho já totalmente desfigurado. Rose, tão perfumada e singela como seu próprio nome sugere, sentiu-se na estranha obrigação de falar com aquele homem sujo, cabelo desalinhado, roupas rasgadas e com bastante frio. Sentiu-se também atraída, sabe-se lá o motivo, por ele. E não o julgou. Não ficou pensando no que teria acontecido a ele pra ter tido este destino. Apenas queria conversar um pouco, sobre qualquer coisa, estava por demais angustiada por estar em casa, acordada, olhando para as paredes.
Deu a ele suas luvas, delicadas e quentes, e perfumadas com seu cheiro. Mais que prontamente Paulo aceitou, pois sabia que suas mãos já estavam a ponto de literalmente congelar. Ele começou a se sentir novamente sóbrio com o chocolate quente que Rose o comprou. Conversaram então sobre o clima, sobre a hora em que ambos estavam no meio da rua e seus motivos. Conversaram também sobre a nacionalidade de cada um. Ele, um pobre baiano que foi à América procurar um emprego; ela, uma estado-unidense de classe média alta, que estava se sentindo uma miserável mulher. Falaram, ainda, sobre seus fortúnios e infortúnios. Em um certo ponto da conversa ambos não tinham mais o que se dizer, e apenas ficaram se olhando. Rose chorou, com seus espinhos cravados em seu coração.
E naquela madrugada Paulo teve onde dormir.
Texto por Lucia Silva

Tuesday, April 04, 2006

A primeira vez


Começo este blog com o objetivo claro e simples de dividir, como o próprio nome sugere, contos e poesias de minha preferência. Algumas das vezes publicarei textos de minha autoria pois gostaria que meus amigos lessem e dessem as suas opiniões. Todas as vezes que forem ao ar textos de autores conhecidos darei o devido crédito. Gostaria, também, que todos enviassem sugestões de contos e poesias que fossem de suas preferências. Está dado por aberto este blog.